A neuropsicóloga Sofía Fonseca Moreno analisa como a variabilidade da frequência cardíaca (VFC) influencia o comprometimento cognitivo na velhice.
Introdução
A expectativa de vida aumentou, por isso o grupo de pessoas com mais de 60 anos cresceu a nível mundial (Organização Mundial da Saúde, 2015), inclusive no México. Com a maior idade, é esperado que diversas funções cognitivas comecem a se deteriorar. No entanto, essa deterioração pode ser suficientemente severa para comprometer a qualidade de vida das pessoas que a sofrem (Aveleyra & Ostrosky, 2007; Forte et al., 2019; Mejía-Arango et al., 2007).
Diante dessa situação, é importante conhecer intervenções que favoreçam um envelhecimento cognitivo saudável, como é o biofeedback da variabilidade da frequência cardíaca (VFC), intervenção baseada em evidência científica (Moss, 2004).
Funções cognitivas e envelhecimento
O que são as funções cognitivas?
As funções cognitivas foram definidas como aquelas habilidades mentais que nos permitem, aos seres humanos, interpretar e manejar corretamente a informação que vem do meio. Um funcionamento cognitivo adequado é essencial, pois nos permite realizar todas as nossas atividades da vida diária (AVDs) de forma ótima, como ler, dirigir, escrever, falar, raciocinar, planejar, etc. Algumas dessas funções cognitivas são atenção, memória, linguagem e funções executivas (Aveleyra & Ostrosky, 2007; Forte et al., 2019).
Mudanças cognitivas associadas ao envelhecimento
Durante o envelhecimento ocorrem diversas mudanças, como a deterioração de certas estruturas cerebrais e a perda de tecido nervoso. Isso modifica tanto o funcionamento do cérebro quanto o desempenho cognitivo.
Entre as mudanças mais comuns apresentam-se dificuldades nas habilidades perceptivas, da memória e da aprendizagem, alterações em habilidades visuoespaciais e construtivas, menor capacidade para incorporar novas informações e uma lentidão nas respostas motoras. Também podem ocorrer mudanças na linguagem e nos processos verbais, embora em alguns casos essas funções mostrem certa resistência à deterioração e até possam melhorar com a idade avançada (Ardilla, 2012).
Essas mudanças anteriormente mencionadas são consideradas normais. Contudo, quando avançam o suficiente para afetar a qualidade de vida e o funcionamento cotidiano de uma pessoa (Forte et al., 2019), podem se relacionar com um comprometimento cognitivo que já não é próprio do envelhecimento normal, como o comprometimento cognitivo leve (DCL) (Aveleyra & Ostrosky, 2007).
O que é o comprometimento cognitivo leve (DCL)?
O comprometimento cognitivo leve é uma condição caracterizada pela presença de um deterioramento significativo em uma ou mais funções cognitivas, mas que não interfere de forma substancial com a autonomia funcional da pessoa (American Psychiatric Association, 1994).
Segundo o National Institute on Aging e a Alzheimer’s Association, os critérios diagnósticos incluem a preocupação do paciente ou de um informante sobre mudanças na cognição em relação ao seu estado prévio, a presença de alterações em funções cognitivas, a manutenção da independência funcional, embora com maior lentidão ou erros, e a ausência de sinais clínicos que indiquem demência (Albert et al., 2011; McKhann et al., 2011). Apesar de não se tratar de um tipo de demência, o DCL representa um importante sinal de alerta, já que a probabilidade de progredir do comprometimento cognitivo leve para uma demência estima-se entre 10% e 15% (Albert et al., 2011).
A variabilidade da frequência cardíaca e o envelhecimento
As mudanças nas funções cognitivas que ocorrem durante o envelhecimento não aparecem de forma isolada, senão que estão relacionadas com outros processos fisiológicos que também são afetados pela idade.
Por exemplo, à medida que se envelhece, o coração experimenta uma redução na frequência das batidas cardíacas e o relaxamento ventricular é mais lento. Essas alterações cardiovasculares acompanham-se também de modificações estruturais e funcionais a nível cerebral, assim como de uma regulação menos eficiente do sistema nervoso autônomo, que desempenha um papel chave na regulação fisiológica do organismo (Bozkurt et al., 2016). Nesse contexto, observou-se uma associação entre o estado do sistema nervoso autônomo e o rendimento cognitivo em adultos mais velhos (Shaffer & Venner, 2013).
Com o envelhecimento, diversos fatores contribuem para a deterioração do sistema cardiovascular, aumentando assim o risco de doenças crônicas como a hipertensão arterial. Entre esses fatores de risco encontram-se a degeneração progressiva das artérias e o acúmulo de gordura nas paredes vasculares, o que reduz o diâmetro interno dos vasos sanguíneos e dificulta um fluxo sanguíneo adequado. Em particular, a hipertensão na população idosa é uma condição altamente prevalente nessa fase da vida e associa-se a um maior risco de comprometimento cognitivo e doenças neurodegenerativas (Almeida-Santos et al., 2016).
O que é a VFC?
A variabilidade da frequência cardíaca (VFC) é um indicador da regulação do sistema nervoso autônomo, encarregado de controlar funções involuntárias como respiração, digestão e frequência cardíaca. A VFC é um fenômeno do ciclo cardíaco definido como a variação do tempo em milissegundos que existe entre batimentos cardíacos consecutivos e é um sinal de quão bem funciona o sistema nervoso autônomo. Essa medida indica o quão flexível e adaptável é o organismo para responder a diferentes situações e uma maior variabilidade indica que há uma melhor regulação (Acharya et al., 2006; Thayer et al., 2012).
A regulação autonômica global do coração diminui com o envelhecimento, o que provoca uma redução progressiva na variabilidade da frequência cardíaca, refletindo então uma menor capacidade do organismo para se adaptar e responder a distintos estímulos fisiológicos (Almeida-Santos et al., 2016).
A VFC pode ser medida por meio de um eletrocardiograma (ECG) ou utilizando um fotopletismógrafo (PPG), que detecta as mudanças no volume do pulso sanguíneo. A partir dessas medições da frequência cardíaca, é possível analisar a variabilidade da frequência cardíaca (VFC) utilizando diferentes análises, como a análise no domínio do tempo ou no domínio da frequência (Acharya et al., 2006).
Tem-se evidenciado que uma alta VFC associa-se a maior bem-estar psicológico, melhor autorregulação emocional e menor risco de doenças físicas e mentais. Em contraste, uma VFC baixa pode indicar um organismo menos flexível, com menor capacidade para se adaptar a situações exigentes ou estressantes (Acharya et al., 2006; Moss, 2004).
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Relação entre o córtex cerebral, a VFC e as funções cognitivas
Algumas estruturas cerebrais participam da regulação da frequência cardíaca e da VFC. Em específico, algumas áreas do cérebro, como o córtex pré-frontal medial e orbital, ajudam a modular a frequência cardíaca por meio do nervo vago (Williams et al., 2019).
Essas regiões cerebrais comunicam-se por sua vez com outras estruturas, como a amígdala e alguns núcleos do tronco encefálico, que em conjunto regulam a atividade do coração (Gianaros et al., 2004). Isso significa que a VFC não só reflete o estado do sistema cardiovascular, mas também o grau de controle que o cérebro tem sobre o organismo.
Um estudo que demonstra a relação entre a variabilidade da frequência cardíaca (VFC) e o córtex pré-frontal é o de Gianaros (2004), cujo objetivo foi caracterizar a relação funcional entre a ativação regional cerebral e a atividade cardíaca autonômica.
Por meio de uma tomografia por emissão de positrões estimaram o fluxo sanguíneo em algumas regiões e obtiveram um índice da VFC como indicador da atividade cardíaca autonômica de 93 adultos, com faixa etária de 50 a 70 anos, enquanto realizavam tarefas de memória de trabalho.
Seus resultados mostraram correlações positivas entre a VFC e as seguintes áreas cerebrais: córtex pré-frontal ventromedial, ínsula e complexo amigdalino-hipocampal, estruturas que ajudam a regular a atividade autonômica do coração (Gianaros et al., 2004).
Isto demonstra que, quando o cérebro (especialmente as áreas que regulam as emoções e a cognição, como o córtex pré-frontal) está mais ativo durante tarefas cognitivas, também há uma melhor regulação do coração, o que apoia a ideia de uma conexão funcional entre o cérebro e o coração.
Devido a essa relação entre cérebro e coração, consequentemente, quando há um problema nesse sistema de regulação, o fluxo sanguíneo que vai para essas áreas do cérebro pode ser afetado, o que diminui sua capacidade para controlar o coração de forma adequada. Ou seja, visto que o coração e o cérebro estão estreitamente conectados, mudanças em um desses sistemas podem influenciar diretamente o outro.
Nesse sentido, uma baixa VFC tem sido relacionada a um pior desempenho em diversas funções cognitivas:
- Por exemplo, encontrou-se que uma menor VFC associa-se a um pior rendimento tanto na memória verbal de curto quanto de longo prazo.
- Além disso, uma VFC reduzida vinculou-se a um baixo desempenho linguístico, e os níveis de VFC em repouso demonstraram ser preditores do desempenho atencional.
- Também foi relatada uma associação entre uma menor VFC e um pior desempenho em funções executivas, assim como em habilidades visuoespaciais.
- Ademais, indivíduos com baixa VFC mostraram pior desempenho e maior deterioração na velocidade de processamento.
No entanto, esses achados devem ser interpretados com cautela, já que também existe evidência, embora em menor proporção, que não confirma essas associações, o que sugere a necessidade de mais pesquisas para esclarecer a natureza dessa relação. (Forte et al., 2019; Thayer et al., 2012).
Segundo a evidência científica, demonstrou-se que pessoas com níveis mais altos de VFC apresentam melhor controle sobre a memória e maior capacidade para suprimir lembranças indesejadas.
Em contraste, uma VFC baixa associa-se a um pior desempenho em tarefas de memória verbal, tanto no curto quanto no longo prazo. Em relação à linguagem, observou-se que uma VFC reduzida se vincula a um desempenho linguístico inferior. No que diz respeito à atenção, evidenciou-se que a VFC em repouso prediz o desempenho atencional, sendo os níveis mais baixos de VFC um indicador de pior rendimento. Ademais, uma menor VFC tem sido relacionada a um baixo desempenho em funções executivas, habilidades visuoespaciais e a uma maior diminuição na velocidade de processamento (Forte et al., 2019).
Esses achados apoiam a ideia de que a VFC não é apenas um marcador de saúde cardiovascular, mas também poderia ser um indicador do funcionamento cognitivo.
Conclusão
Em vista de tudo exposto, na segunda parte deste artigo aprofundaremos o biofeedback da VFC e como funciona, trazendo evidências sobre seus efeitos na melhora do funcionamento cognitivo e considerações éticas.
Se você tem interesse em continuar conhecendo mais sobre o biofeedback da VFC na melhora do funcionamento cognitivo, pode continuar lendo a segunda parte deste artigo aqui.
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Perguntas frequentes sobre a variabilidade da frequência cardíaca (VFC)
1. O que é a variabilidade da frequência cardíaca (VFC)?
A VFC é a flutuação no intervalo entre batimentos do coração. É um indicador do equilíbrio do sistema nervoso autônomo e da capacidade do corpo de se adaptar ao estresse.
2. Por que a VFC é importante em adultos mais velhos?
Uma VFC baixa associa-se a um pior estado de saúde geral e a um maior risco de comprometimento cognitivo, pois reflete menor capacidade de autorregulação fisiológica e emocional.
3. Quais funções cognitivas são afetadas por uma VFC baixa?
Principalmente atenção, memória de trabalho, velocidade de processamento e funções executivas.
4. Como a VFC é medida em ambientes clínicos?
Pode ser medida por eletrocardiograma ou por dispositivos portáteis com sensores de frequência cardíaca, usando ferramentas de análise do ritmo cardíaco.
5. Existe uma relação entre a VFC e doenças neurodegenerativas como o Alzheimer?
Sim, diversos estudos sugerem que uma VFC baixa pode estar associada a um maior risco de comprometimento cognitivo leve e doença de Alzheimer, embora não seja um marcador diagnóstico único.
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“Este artigo foi traduzido. Link para o artigo original em espanhol:”
La variabilidad de la frecuencia cardíaca (VFC) y su relación con el deterioro cognitivo
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