O neuropsicólogo e pesquisador Ángel Martínez Nogueras aborda o problema da multifatorialidade dos testes neuropsicológicos. Especificamente, no Teste de Stroop.
Vamos nos situar. Imaginem uma semana qualquer em que vocês estejam avaliando vários pacientes na clínica. Estão aplicando o Teste de Stroop e, na lâmina Palavra-Cor, se deparam com o seguinte:
- O paciente 1 alcança o item 23, comete 5 erros e corrige os 5 ele mesmo, sem necessidade de intervenção do avaliador;
- O paciente 2 alcança o item 19, comete 8 erros, mas só detecta e autocorrige 1; o avaliador lhe dá feedback imediatamente após cada erro, o sujeito se corrige, mas continua cometendo erros em itens posteriores;
- O sujeito 3 alcança o item 21, não chega a cometer nenhum erro, mas em muitos itens titubeia e quase erra antes de dar a resposta correta, o que lhe exige um grande esforço para controlar a resposta e não errar;
- O sujeito 4 alcança o item 9, cometendo 9 erros não autocorrigidos, não se beneficia do feedback do avaliador e abandona o teste no item 9 pelo esforço que lhe exige realizá-lo, sem chegar a esgotar os 45 segundos.
São casos reais da minha clínica e, respectivamente, são:
- Um paciente de 54 anos com AVC,
- um paciente de 32 anos com traumatismo cranioencefálico,
- uma paciente de 66 anos com angiopatia amiloide,
- um paciente de 69 anos com doença de Parkinson.
Em vista do exposto, podemos concluir que, nos quatro casos, a baixa pontuação obtida é mediada por um déficit inibitório? Em outras palavras, podemos diagnosticar um déficit de inibição nos quatro pacientes?
Deixo que já antecipem a resposta: efetivamente, não. Então, o que isso faz à suposição, quase rotineira na neuropsicologia, de que um desempenho deficiente na parte Palavra-Cor pode ser interpretado como reflexo de um déficit nos processos de inibição? Pois não sei exatamente onde isso nos deixa, mas certamente longe dos objetivos da avaliação neuropsicológica.
Citando Banich1, “considerar apenas a pontuação final da tarefa de Stroop impõe uma limitação na compreensão do efeito Stroop, pois ela reflete a soma dos processos cognitivos envolvidos em sua resolução, mas não nos informa sobre a participação relativa desses processos durante sua execução”. Eu não poderia ter expressado melhor.
Para esclarecer o acima e detalhar o problema de fundo tratado aqui, que não é outro senão a multifatorialidade dos testes ou provas de avaliação, vou me concentrar em um específico: o Teste de Stroop.
A multifatorialidade dos testes neuropsicológicos: o Teste de Stroop
Em seguida, apresento-lhes um breve resumo da complexidade do conjunto cognitivo necessário para realizar com sucesso o Teste de Stroop. Farei isso ultrapassando a capacidade explicativa dos modelos teóricos de inibição e me baseando no interessante conceito de controle cognitivo.
Para esclarecermos, o controle cognitivo não seria uma função cognitiva em si, mas emergiria em um momento específico por meio da interação pontual de processos cognitivos como memória de trabalho, flexibilidade cognitiva, monitoramento, inibição e seleção de resposta. Seu objetivo seria proporcionar um ajuste dinâmico e flexível do comportamento de acordo com os objetivos e exigências da tarefa em curso, especialmente em situações não rotineiras que exijam respostas não habituais ou preponderantes, como é o caso do Teste de Stroop2,3.
Processos cognitivos incluídos no Teste de Stroop
Ao decompor o processo de controle cognitivo durante sua ativação para resolver o Teste de Stroop, colocamos em jogo uma cascata de processos cognitivos que inclui:
Memória de trabalho
A relevância da memória de trabalho em tarefas tradicionalmente consideradas de inibição conta cada vez com maior respaldo na literatura. A esse respeito, Tiego et al. (2018) propuseram um modelo de controle inibitório de tipo hierárquico, no qual a memória de trabalho se situa como um processo de ordem superior que modula o desempenho de outros processos cognitivos, neste caso, da inibição.
Durante a realização da parte Palavra-Cor do Teste de Stroop, uma falha em manter um nível de ativação suficiente na memória de trabalho, tanto dos objetivos da tarefa quanto da informação relevante (nomear a cor da palavra), poderia ocasionar uma falha na inibição. Consequentemente, facilitar a emissão de uma resposta preponderante inadequada ao contexto (ler a palavra).
Visto de outra forma, indivíduos com maior desempenho de memória de trabalho também se mostrariam menos suscetíveis a cometer erros de inibição.
Inibição
O processo de inibição, por um lado, evitaria a interferência ou o acesso à memória de trabalho de informações não relevantes para o desempenho correto da tarefa, facilitando o processamento preferencial das informações relevantes, isto é, a cor das palavras.
E, por outro, permitiria “frear” uma resposta automatizada, como a leitura de palavras, possibilitando a seleção e emissão de uma resposta alternativa conforme as demandas do contexto, neste caso, nomear a cor da tinta.
Portanto, pode-se dizer que, para a resolução do Teste de Stroop, memória de trabalho e inibição devem atuar de forma coordenada. De fato, há estudos que mostram que sujeitos com maior controle de inibição e melhor memória de trabalho apresentam menor efeito Stroop do que aqueles com pobre controle de inibição e baixa capacidade de memória de trabalho5,6.
Flexibilidade cognitiva
A parte Palavra-Cor do Teste de Stroop, além de apresentar uma situação nova ou pouco habitual, também exige uma mudança ou atualização rápida ou ágil tanto do objetivo quanto do conjunto de respostas em relação às partes anteriores do teste. Ou seja, as partes Palavra e Cor, pois passa-se de uma situação em que se deve responder a estímulos congruentes, que requerem respostas habituais ou já aprendidas, para outra que exige emitir uma resposta nova ou infrequente diante de estímulos incongruentes que geram conflito.
Assim, um desempenho deficitário do processo de flexibilidade cognitiva poderia levar à emissão de respostas inadequadas ou perseverativas. Tanto por falta de ajuste aos novos objetivos, ao manter um conjunto de respostas previamente bem-sucedido, mas inadequado conforme as novas exigências da tarefa (inerência na resposta), quanto por dificuldade em mudar ou ajustar a resposta com base no feedback recebido após a ocorrência de algum erro7,8.
Monitoramento
O processo cognitivo de monitoramento costuma ser caracterizado como um processo executivo encarregado de temporalizar o desenvolvimento da atividade, supervisionar se a conduta está alinhada aos requisitos da tarefa ou do ambiente e detectar erros ou discrepâncias entre a resposta e o objetivo da tarefa em curso, indicando que é necessária uma atualização ou mudança de resposta9.
Dentro do mecanismo que conforma o controle cognitivo, para que o processo de monitoramento atue com sucesso é necessário que a memória de trabalho mantenha ativo o objetivo da tarefa. Seu propósito é permitir supervisionar que a conduta permaneça alinhada a ele. E, além disso, que a flexibilidade cognitiva atue adequadamente, ajustando o conjunto de respostas nos casos em que se detecte um erro ou se receba um feedback negativo sobre o resultado da resposta emitida10.
Um aspecto relacionado ao monitoramento estudado por meio da tarefa de Stroop se concentra na análise dos erros e das autocorreções, estudados separadamente, assim como no ajuste da resposta com base no feedback recebido após a ocorrência de um erro11.
O ponto de vista anterior enfatiza que, além do registro do número de itens que um paciente consegue ler, seria realmente interessante coletar aspectos qualitativos relacionados à análise dos erros, como forma de enriquecer os dados e aumentar a precisão das conclusões extraídas.
Velocidade de processamento
É bem sabido que a lentidão na velocidade de processamento da informação pode afetar negativamente o desempenho de processos cognitivos como inibição, memória de trabalho e flexibilidade durante a realização de tarefas complexas.
Por outro lado, dispomos de publicações e estudos de validade de construto sobre o Teste de Stroop que indicam que a velocidade de processamento é um fator importante para sua adequada resolução12. Afinal, o desempenho nas diferentes partes do teste é medido com base no número de itens que um sujeito alcança em 45 segundos, ou seja, sua velocidade de execução.
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Conclusão
Em última análise, e, no fundo, este texto aborda a questão da multifatorialidade dos testes que usamos habitualmente para a avaliação da cognição. Nosso objetivo na prática clínica da neuropsicologia não é dizer a um paciente onde está seu limite, estabelecido pela psicometria, mas sim o que ocasiona esse limite e como podemos superá-lo.
Imaginem a dimensão do erro e da limitação no desenvolvimento da neuropsicologia em que incorreríamos se fundamentássemos nossas hipóteses de trabalho e conclusões clínicas apenas na interpretação quantitativa da pontuação final de um paciente em um teste.
Em contrapartida, nossa meta não pode ser outra senão abordar a avaliação de um sujeito com a perspectiva ou intenção de dissecar a rede de processos cognitivos que sustenta a realização das tarefas que propomos, a fim de determinar a implicação particular de cada um deles em sua tentativa de resolução.
Há algum tempo gravei a fogo em minha memória a seguinte afirmação de Benedet91 “a neuropsicologia começa onde acaba a psicometria”, à qual se poderia acrescentar que o caminho após a psicometria deve estar pavimentado com modelos teóricos, e quanto melhor o modelo teórico, mais sólido será o avanço.
O texto que vocês acabaram de ler é um breve resumo de um artigo publicado na Revista Iberoamericana de Neuropsicología intitulado Test de Stroop, algo más que inhibición. Una revisión bajo el concepto de control cognitivo. No link a seguir, vocês têm acesso ao artigo completo: https://neuropsychologylearning.com/portfolio-item/test-de-stroop-algo-mas-que-inhibicion-una-revision-bajo-el-concepto-de-control-cognitivo/
Bibliografia
- Banich MT. The Stroop Effect Occurs at Multiple Points Along a Cascade of Control: Evidence From Cognitive Neuroscience Approaches. Front Psychol. 2019 Oct 9;10:2164.
- Lenartowicz A, Kalar DJ, Congdon E, Poldrack RA. Towards an ontology of cognitive control. Top Cogn Sci. 2010 Oct;2(4):678-92.
- Soutschek A, Strobach T, Schubert T. Working memory demands modulate cognitive control in the Stroop paradigm. Psychol Res. 2013 May;77(3):333-47.
- Tiego J, Testa R, Bellgrove MA, Pantelis C, Whittle S. A Hierarchical Model of Inhibitory Control. Front Psychol. 2018;9:1339.
- Kane MJ, Engle RW. Working-memory capacity and the control of attention: the contributions of goal neglect, response competition, and task set to Stroop interference. J Exp Psychol Gen. 2003 Mar;132(1):47-70.
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- Miller, A., Bryant, K., Martincin, K., Livers, E., Martukovich, R., & Poreh, A. M. (2009, August). Examining the Self-Corrected and Non-Self-Corrected Errors on the Stroop Test. In Archives of Clinical Neuropsychology (Vol. 24, No. 5, pp. 441-441). Great Clarendon st, Oxford OX2 6DP, England: Oxford Univ Press.
- Periáñez JA, Lubrini G, García-Gutiérrez A, Ríos-Lago M. Construct Validity of the Stroop Color-Word Test: Influence of Speed of Visual Search, Verbal Fluency, Working Memory, Cognitive Flexibility, and Conflict Monitoring. Arch Clin Neuropsychol. 2020 Jun 9:acaa034
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