Quando ocorrem disfunções em uma ou várias etapas do desenvolvimento do sistema nervoso surgem os chamados transtornos do neurodesenvolvimento infantil. Esses transtornos conduzem ou coexistem com outras condições médicas, emocionais e, de maneira importante, neuropsicológicas.
Este post se concentrará em descrever as consequências neuropsicológicas de alguns transtornos do neurodesenvolvimento infantil. Em seguida, será descrito ao menos um transtorno do neurodesenvolvimento infantil de cada tipo, focalizando a atenção nos efeitos neuropsicológicos decorrentes dessa condição.
Transtornos do neurodesenvolvimento infantil
Os transtornos do neurodesenvolvimento infantil são variados e se definem especialmente com base em diferentes fatores precipitantes. Esses fatores são: a causa, a idade de aparecimento e/ou detecção e a sintomatologia. Além disso, existem outros pontos-chave na definição dos transtornos do neurodesenvolvimento infantil, tais como a idade da mãe, os possíveis problemas durante a gravidez, a genética e o ambiente perinatal e pós-natal.
A classificação na qual coincidem vários autores implica:
- Transtornos do neurodesenvolvimento infantil específicos. Os quais são contemplados no DSM-V (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais). Podemos encontrar: TDAH, transtornos da comunicação, TEA, entre outros.
- Transtornos do neurodesenvolvimento infantil de início precoce. Estes podem ser anencefalia, hidrocefalia, etc.
- Transtornos do neurodesenvolvimento infantil por variações genéticas. Por exemplo, síndrome de Down, síndrome de Williams, e síndrome de Angelman.
- Por fim, os transtornos do neurodesenvolvimento infantil por alterações ambientais, tais como síndrome do alcoolismo fetal ou embriopatia por ácido valproico.
São muitos os estudos dedicados a descrever os efeitos neuropsicológicos decorrentes dos transtornos do neurodesenvolvimento infantil do primeiro grupo, pela sua estreita relação com a cognição. No entanto, a literatura sobre a neuropsicologia dos demais transtornos do neurodesenvolvimento não é tão abundante, apesar da necessidade de que os profissionais neuropsicólogos conheçam essa sintomatologia, a fim de poder oferecer ao paciente um tratamento integral.
Transtornos do neurodesenvolvimento infantil específicos
Desde alguns anos, há diversos trabalhos sobre os efeitos neuropsicológicos associados a transtornos cerebrais em crianças. O TEA é um dos transtornos do neurodesenvolvimento infantil mais estudados tanto no âmbito clínico quanto na pesquisa, especialmente em países de alta renda como a Espanha. Na Tabela 1 é possível consultar um resumo com os principais transtornos do neurodesenvolvimento incluídos neste grupo por ordem de incidência. Como resultado, mostra-se que os transtornos de maior incidência são o TEA e o TDAH
TEA e seus efeitos neuropsicológicos associados
Junto com o TDAH, o TEA é o transtorno do neurodesenvolvimento infantil mais prevalente na Espanha. Trata-se de uma denominação que atualmente inclui outros transtornos, especificamente o autismo, o transtorno global do desenvolvimento sem outra especificação e a síndrome de Asperger.
Embora a causa principal desses diagnósticos não seja conhecida no momento, as principais hipóteses se concentram na causa genética. Por essa razão, o TEA está sujeito a uma elevada especificidade como transtorno e a uma alta individualização como paciente. Ou seja, apresenta uma sintomatologia característica que o diferencia facilmente de outros transtornos do neurodesenvolvimento infantil. Contudo, não existem dois pacientes com TEA iguais, pois o desenvolvimento pessoal do paciente, o apoio (familiar, escolar, social etc.) e a presença ou não de deficiência intelectual são fatores moduladores do desenvolvimento do TEA. O que deve ser considerado na intervenção de cada paciente. Apesar de cada paciente com TEA ser único, o diagnóstico costuma ser feito precocemente, entre os 12 e 24 meses. O diagnóstico inclui exames médicos físicos, avaliações genéticas e a aplicação de uma bateria de avaliação neuropsicológica e psicossocial.
Por outro lado, os efeitos neuropsicológicos mais presentes no TEA são os relacionados com a comunicação, incluindo pensamento e linguagem. Além disso, apresentam alterações em algumas habilidades perceptivo-motoras e nas funções executivas. Da mesma forma, deve-se aplicar um protocolo de avaliação neuropsicológica completo que permita assegurar quais capacidades cognitivas estão alteradas ou preservadas. Em relação à intervenção, a Associação Americana de Psicologia propôs que sejam aplicados somente protocolos de intervenção com base empírica consolidada por profissionais experientes.
Transtornos do neurodesenvolvimento infantil de início precoce
São aqueles que surgem durante a formação e desenvolvimento do sistema nervoso do feto. Dependendo de em qual etapa ocorrer a condição, assim será o transtorno do neurodesenvolvimento infantil e suas consequências associadas. Na Figura 1 é mostrado um esquema dos diferentes transtornos do neurodesenvolvimento infantil de início precoce, de acordo com a etapa de desenvolvimento do sistema nervoso em que ocorre a anomalia ou segundo a parte cerebral mais afetada.
Os transtornos do neurodesenvolvimento infantil cujo perfil neurocognitivo foi mais estudado são os referentes à primeira coluna, os de afetação durante o fechamento do tubo neural.
Hidrocefalia e seus efeitos neuropsicológicos associados
A hidrocefalia é um transtorno do neurodesenvolvimento infantil que costuma surgir antes do nascimento ou em torno dele. Especificamente, é um acúmulo desproporcional de líquido cefalorraquidiano (LCR), o qual afeta as dimensões da cabeça e o desenvolvimento cerebral.
Entre as causas mais frequentes está a presença de um tumor cerebral que causa deslocamento das estruturas e dificulta um drenagem ideal do LCR. Também pode ser consequência de uma hemorragia cerebral durante o neurodesenvolvimento fetal. Embora, em muitos casos, deva-se a um defeito congênito. Considerando que é um transtorno do neurodesenvolvimento de início precoce, o diagnóstico baseia-se principalmente na aplicação de técnicas de exame neurológico que estimam a quantidade extra de LCR e as partes cerebrais mais afetadas. A intervenção primária requer neurocirurgia, pois é preciso inserir um dreno a nível cerebral com o objetivo de evacuar o excesso de líquido.
Os efeitos neuropsicológicos decorrentes de uma hidrocefalia dependem do grau de compressão cerebral que ocorreu devido a esse excesso de LCR. Alguns estudos mostraram que esses pacientes apresentam alterações nas habilidades perceptivo-motoras, com problemas na função visual, especificamente na visão construtiva. Além disso, sofrem alterações na memória de trabalho, que requer controle e inibição de informações, havendo também anomalias em algumas das funções executivas, como o planejamento. O uso da linguagem pragmática também fica alterado com esse diagnóstico. Por essa razão, o profissional neuropsicólogo deve trabalhar essas funções cognitivas com o paciente após a recuperação da neurocirurgia, para garantir que a nova configuração cerebral, sem o excesso de LCR, permita desenvolver essas habilidades da forma mais ótima possível.
Transtornos do neurodesenvolvimento infantil por variações genéticas
Os genes constituem as características biológicas do ser humano, incluindo a parte biológica e também a cognitiva. Quanto ao desenvolvimento do cérebro, a genética também desempenha um papel-chave, orientando essa evolução cerebral não apenas da espécie, mas de cada indivíduo dentro dela. Quando aparece alguma anomalia genética durante o desenvolvimento cerebral, surgem esse tipo de transtornos. Na Tabela 2 são apresentados os transtornos genéticos mais frequentes, embora aqui descrevamos a síndrome de Williams, pois ela possui um perfil cognitivo característico.
Síndrome de Williams e seus efeitos neuropsicológicos associados
É um transtorno genético pouco comum, em comparação com a síndrome de Down. Essa síndrome apresenta alta especificidade e afeta várias das funções cognitivas fundamentais. Esse transtorno do neurodesenvolvimento infantil surge por uma microdeleção do cromossomo 7, o que produz patologias em diferentes sistemas físicos, tais como malformações cardíacas e problemas metabólicos relacionados a diferentes substâncias. Além disso, produz traços fenotípicos característicos, como o rosto de duende.
O diagnóstico é precoce e os pacientes costumam ser atendidos desde idades precoces com exames de avaliação neurológica, física e comportamental. A detecção precoce desse transtorno do neurodesenvolvimento infantil é essencial nesses pacientes, pois inúmeras pesquisas demonstraram que uma intervenção rápida pode manter preservadas certas capacidades cognitivas.
Em relação à avaliação neuropsicológica, os profissionais dessa área devem conhecer o transtorno e estabelecer um perfil cognitivo individualizado, pois, embora se associe a um deficiência intelectual moderada a grave, algumas habilidades como a linguagem e a memória estão preservadas. Nesse sentido, reconhecem rostos com facilidade, são sensíveis aos sons e tendem a estabelecer vínculos afetivos. No entanto, apresentam disfunções nas habilidades visuoespaciais e/ou visuo-perceptivas. Portanto, recomenda-se que o neuropsicólogo aplique uma bateria de avaliação neuropsicológica focada nas habilidades perceptivas (visuais, auditivas, sensoriais etc.) para estabelecer os pontos fortes e fracos do paciente do ponto de vista neuropsicológico e assim elaborar seu plano de intervenção.
Transtornos do neurodesenvolvimento infantil por variações ambientais
Quando os transtornos do neurodesenvolvimento infantil são consequência de fatores presentes no ambiente, estabelece-se uma relação causal como hipótese, embora nem em todos os casos isso possa ser comprovado.
Certamente, o sistema nervoso inicia seu desenvolvimento nas primeiras semanas de gestação (aproximadamente aos 21 dias) e avança por diferentes fases, sendo algumas mais sensíveis que outras. Da mesma forma, demonstrou-se que a exposição do sistema nervoso a certos agentes tóxicos ou patógenos durante algumas dessas fases pode levar a transtornos do neurodesenvolvimento. A fonte de toxicidade nem sempre vem da mãe gestante (álcool, tabaco, problemas de saúde mental etc.), mas também pode estar presente no ambiente em que ela convive durante a gestação. Por exemplo, a exposição a substâncias xenobióticas resultantes de atividades industriais, agrícolas ou urbanas nas proximidades em que vive. A Tabela 3 mostra uma série de fatores nocivos ao sistema nervoso durante seu desenvolvimento, cuja exposição pode causar efeitos irreversíveis no mesmo.
Síndrome Alcoólica Fetal e seus efeitos neuropsicológicos associados
Essa síndrome está incluída dentro do transtorno do Espectro Alcoólico Fetal (TEAF), conceito mais amplo que agrupa todos os possíveis diagnósticos com sintomatologia apresentada por uma criança exposta ao álcool durante seu desenvolvimento pré-natal.
A causa é bem conhecida, pois a exposição ao álcool durante a vida pré-natal é a principal causa de malformações durante o desenvolvimento do sistema nervoso, como vimos na Tabela 3.
Entre os sintomas associados ao diagnóstico de SAF está o atraso no crescimento sistêmico e, especialmente, do cerebral, o que produz alterações em níveis sinápticos e na formação de estruturas. Da mesma forma, são muito características nesses pacientes as malformações crânio-faciais, ocasionando importantes problemas cognitivos e comportamentais. Alguns pacientes também apresentam problemas de estatura e peso, e são frequentes os episódios de convulsões clínicas.
No âmbito neuropsicológico, são afetadas esferas cognitivas específicas, sendo muito frequentes os problemas de aprendizagem nesses pacientes. Da mesma forma, os estudos mais comuns destacam problemas graves de processamento, na compreensão verbal, no raciocínio perceptivo e no visuoespacial. Tudo isso acompanhado de transtornos comportamentais com nuances desafiantes e transgressão de regras e limites. Embora se saiba cada vez mais sobre o perfil neurocognitivo do SAF, ainda não foi estabelecido um perfil específico para essa síndrome, pois algumas disfunções são mascaradas por outros transtornos emocionais produzidos pela falta de apego ou sentimento de abandono que a maioria desses pacientes sofre desde cedo. Por isso, o profissional neuropsicólogo deve aplicar uma bateria padrão de avaliação neuropsicológica e trabalhar a partir dos déficits e fortalezas com o paciente e a família.
Conclusões
Embora não exista uma classificação estável para detalhar os transtornos do neurodesenvolvimento infantil, ao longo desta entrada foram descritos alguns desses transtornos segundo sua etiologia, a etapa de aparecimento e as consequências comórbidas.
Por conseguinte, foi descrito um transtorno dentro de cada tipo, dando especial ênfase aos efeitos neuropsicológicos que acarretam, para que os profissionais neuropsicólogos tenham mais informações sobre eles. Além disso, para que possam desempenhar o trabalho que têm pela frente, não apenas nos transtornos do neurodesenvolvimento contemplados no DSM-V, que são os mais conhecidos, mas também nos demais transtornos decorrentes de malformações genéticas ou ambientais ou naqueles de início precoce.
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